Caqui: revista brasileira de haicai

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Portal, janeiro de 1987, São Paulo, pp. 10-12

O hai-kai verde-amarelo em discussão

O que foi o I Encontro Brasileiro de Hai-Kai e suas conseqüências estão nessa edição especial. Conheça também Afrânio Peixoto que em 1928 já defendia a sua naturalização

Foi um grande sucesso: o I Encontro Brasileiro de Hai-Kai, realizado no hall de entrada da biblioteca do Centro Cultural São Paulo no dia 6 de dezembro. Era esse o comentário que se ouvia dos participantes e principalmente dos palestristas e dos jurados que avaliaram os trabalhos dos 63 inscritos para uma oficina literária em forma de concurso, que se realizou durante o evento cultural. Os nossos convidados foram: Paulo Leminski, Alice Ruiz, Olga Savary e Roberto Saito, todos haikaístas com livros publicados; Mitsuko Kawai e Paulo Colina, ambos poetas e o editor Massao Ohno.

O objetivo desse I Encontro foi explicado por Francisco Handa, diretor da redação do Jornal Portal, que propôs "uma discussão sobre as tendências da literatura brasileira e em particular o hai-kai'. Nesse momento em que muitos poetas se enveredam na trilha do hai-kai não existe por outro lado nenhum estudo aprofundado sobre o assunto. O que há, são referências históricas, que em ligeiras pinceladas nos suplementos literários dos jornais comentam os trabalhos de alguns haikaístas brasileiros. De modo geral, o hai-kai parece estar enjeitado em meio a plêiade brasileira. Ou melhor: sempre foi mal compreendido. Entretanto nas últimas décadas, o hai-kai novamente começou a ser redescoberto através das tiragens humorísticas de Millôr Femandes na revista Veja.

Devemos muito a Millôr Fernandes, que deu um caráter descontraído ao hai-kai e contribuiu para o aparecimento de novos poetas que se interessaram por essa modalidade poética-literária. Nesse I Encontro Brasileiro de Hai-Kai, a geração atual de haikaístas - do fim da década de 70 para cá - estiveram presentes. Quem não se lembra "O livro de hai-kais", escrito por Olga Savary em 80, abriu uma nova era de haikaístas no Brasil. Posteriormente surgiram outros haikaístas, de início, traduzindo e depois fazendo os seus próprios. Mas não podemos descartar os poetas do concretismo como Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari que a partir da segunda metade da década de 50 buscaram uma nova linguagem na poesia, nitidamente com influência oriental. O hai-kai japonês mereceu algumas traduções, ou melhor, interpretações concretistas.

O hai-kai como está sendo elaborado atualmente é diferente da estrutura clássica criada por Guilherme de Almeida nos anos 30. Guilherme tentou dar um mecanismo abrasileirado ao hai-kai outorgando-lhe um corpo e peso poético, com notada influência parnasiana. Ao contrário de Guilherme, que fez questão de conservar a métrica das dezessete sílabas: 5/7/5, hoje os versos são livres. "O mais importante é o espírito do hai-kai", explicou Paulo Leminski a uma senhora japonesa que tinha dúvidas sobre a possibilidade de se fazer um hai-kai fora do Japão. "Mas então, como fica a questão sazonal no hai-kai", retrucou ela novamente, ao que Leminski respondeu "em São Paulo, por exemplo, vivemos as quatro estações do ano, sendo impossível que o hai-kai esteja preso à essa questão".

Nesse I Encontro ficou provado também que os estilos adotados pelos haikaístas brasileiros são diferentes entre sí. A rima aparece em alguns casos, em outros, totalmente esquecida. Por exemplo, Paulo Leminski adota um critério, de que a última sílaba do primeiro verso rime com a última do terceiro:

Pelos caminhos que ando
um dia vai ser
só não sei quando

Esse tipo de rima não aparece nos hai-kais de Olga Savary que prefere jogar com as aliterações entre os versos:

Entre pernas guardas:
casa de água
e uma rajada de pássaros

Uma oficina literária

Pela primeira vez no Brasil foi realizado um concurso de hai-kai, no qual o inscrito desenvolveu o seu poema em trinta minutos. Os temas desse concurso foram: chuva, rua e iluminação, sendo permitido escolher somente dois para concorrer. A avaliação foi feita por seis jurados (anteriormente citados, menos Massao Ohno), que deram notas de zero a dez. A vencedora pelo tema Iluminação" foi Silvia Mera:

Luz prateada de noite plena
Lua clareando
Reflexo de gaivotas

A vencedora pelo tema "rua" foi Suemi Arai com o trabalho:

Uma borboleta
Na minha pequena rua
Uma floricultura

Por fim, pelo tema "chuva", saiu-se vencedora Maria Angélica Shiotsuki:

Alma lavada
Cheiro de terra molhada
Chuva de verão

Na contagem geral dos pontos a vencedora foi novamente Silvia Mera. Os outros dez inscritos que tiveram os seus trabalhos classificados, foram agraciados com prêmios: assinatura do Jornal Portal e o livro HAIKAIS de Olga Savary, cedidos por Roswitha Kempf. Os três vencedores ganharam troféus e uma bolsa de estudos na Aliança Cultural Brasil-Japão.

No encerramento, Massao Ohno parabenizou o Jornal Portal por esta iniciativa e disse que a realização deve continuar nos próximos anos. Aliás, uma data sugerida por Paulo Leminski: 12 de outubro, dia do falecimento de Matsuo Bashô o mais famoso haikaísta de todos os tempos. Mas essa data é feriado no Brasil (dia de Nossa Senhora Aparecida) portanto, o II Encontro Brasileiro de HaiKai deverá ser adiada, mas para o mesmo mês de outubro. Esperem...

Os haikaístas do pós-modernismo

Num programa de televisão, o professor de literatura ao responder uma pergunta formulada por um teleouvinte disse: "quem introduziu o hai-kai no Brasil foi Guilherme de Almeida". Ledo engano. Há mais tempo, antes de Guilherme se interessar pelo hai-kai, outros como Waldomiro Siqueira Jr., Oldegar Vieira e Gil Nunesmaia já tinham descoberto essa forma poética. Sem se esquecer, no entanto, que o mérito maior é de Afrânio Peixoto, que fez a primeira referência textual do hai-kai em forma de ensaio na revista Excelsior, em 1928. Mais tarde esse artigo foi utilizado no seu livro Missangas.

Naquela época, em que respirava os ares "verde-amarelo" do Movimento Modernista, Peixoto defendia a naturalização do hai-kai. "Em francês, inglês, alemão aparecem haikais. Dir-se-ha que assim não devera ser, e ao Japão os deviamos deixar. Então o epigrama ficaria heleno, a sátira romana, o romance novo-latino, o soneto italiano, a balada, a canção, o conto... seriam privativos de certos povos e não universaes formas de arte... O haikai merece naturalização", escreveu no ensaio "O haikai japonês ou epigrama lírico".

Ainda, anterior ao ensaio de Afrânio Peixoto, Mário de Andrade no livro Aspectos da Literatura Brasileira, afirma que Luiz Aranha em 22 já fazia hai-kais que podem ser encontrados no "Poema Giratório". Não era um livro só de hai-kais, mas entremeado por alguns deles. É necessário fazer uma pesquisa mais detalhada desse período literário. Mas os haikaístas brasileiros são unânimes em reiterar a Afrânio Peixoto, o marco inicial para o desenvolvimento do hai-kai no Brasil. "Eu acho errôneo dizer que houve outros antes de Afrânio Peixoto", afirmou recentemente Waldomiro Siqueira Jr.

Depois de Afrânio, o primeiro a publicar um livro só de haikais foi Waldomiro Siqueira Jr. em 1933, que se chamava apenas "Haikais". Esses poemas eram todos sem rimas e com títulos, por exemplo, Misantropo:

Solidão profunda.
Pena não poder livrar-me
Até de mim mesmo.

Porém antes de escrever esse livro, Waldomiro teve outras publicações, como a do Jornal Estudante Paulista do Ginásio São Bento. Contemporâneo de Waldomiro, na Bahia Oldegar Vieira publicava os seus hai-kais, que num eufemismo eram chamados também de "Epigramas Líricos" no periódico "A Tarde" de 1932. Eis um deles que se chama Sonho:

Para colher perfumes
plantei uma roseira...
Mas só nasceram espinhos

No mesmo ano, Oldegar Vieira teve algumas de suas produções publicadas, por Afrânio Peixoto, na Revista Brasileira de Letras. Mas o seu primeiro livro de hai-kai iria sair em 1940, intitulado "Folhas de Chá".

Por alguma ironia, esses dois haikaístas, Waldomiro Siqueira Jr. e Oldegar Vieira, nunca se conheceram pessoalmente. Alguma correspondência foi trocada entre eles, na qual Waldomiro lembra de memória um hai-kai, notadamente de amor, escrito por Oldegar na carta:

Quero para mim
tudo que é teu até mesmo
O ódio que me tens

Quanto a Gil Nunesmaia, perdeu-se completamente o contato.

Um fato curioso e bastante original aconteceu com o haikaísta japonês Goga Massuda, que começou em  1938 fazer hai-kai em português na revista Anuário do Oeste. Aliás, Goga é ainda um dos mais importantes estudiosos do hai-kai no Brasil e no mundo, tendo escrito diversos artigos sobre o assunto.

Segundo ele, o hai-kai entrou no Brasil por influência francesa, opinião aceita pela maioria dos nossos haikaístas, porém descartada por Waldomiro Siqueira Jr. que contesta: "Quem inspirou os nossos poetas a escreverem o hai-kai foi o livro de Venceslau de Morais, 'Relance da Alma Japonesa', em 1926".

O hai-kai segundo os modernistas

Quando Waldomiro escreveu o seu livro de hai-kai, estava no último ano do ginásio, e por diversas vezes foi ridicularizado. "O nosso poeta está novamente divagando", ironizava um de seus professores. Os tempos eram duros. Início do século: a imigração estrangeira era um fator novo na sociedade brasileira as famílias tradicionais resistiam, e ainda, "havia muita indiferença em torno da cultura oriental chegando às glórias do desprezo e zombaria", recorda Waldomiro.

Cassiano Ricardo, classificou o hai-kai como "uma extravagância em face da sensibilidade brasileira". Mário de Andrade, que Waldomiro conheceu por intermédio de um amigo, perguntava-lhe com ar paternal: "como você está indo de chinoiserie?". Esse termo se referia às certas pessoas excêntricas. O hai-kai era um elemento estranho na literatura brasileira. Mas assim não pensava Guilherme de Almeida, um dos poetas mais lidos daquela época.

Foi com Guilherme de Almeida que o hai-kai brasileiro ganhou uma forma própria: conservava-se a métrica, porém introduziu um elemento diferente: a rima. Aliás, Guilherme era bastante conservador por manter as 17 sílabas, e conhecia a fundo o hai-kai original. Era amigo de Nempuku Sato, - segundo informações prestadas por Goga Massuda - um dos renomados haikaístas, remanescente da imigração japonesa no Brasil iniciada em 1908. Por outro lado, o brasileiro arraigado demais a rima das trovas, esta não poderia ser desprezada, cuja estrutura foi criada por Guilherme em 1936.

Guilherme de Almeida popularizou o hai-kai, sendo encontrado na Poesia Vária, de 1947, onde se incluía "Os meus Haikais", um deles, Velhice:

Uma folha morta.
Um galho no céu grisalho.
Fecho a minha porta.

Há crítica por parte dos haikaístas puristas de se fazer haikai numa língua estrangeira, que não seja em japonês. Mas acontece que o hai-kai já se propagou no mundo todo, alias, em 1910 o poeta mexicano Tablada já publicava o primeiro livro de hai-kai do ocidente: "Un dia". Inclusive em 1969, houve em Paris uma primeira tentativa de se fazer um Renga-no-Haikai (um hai-kai desencadeado) tendo como participantes, o italiano Edoardo Sanguineti, o francês Jacques Roubaud, o inglês Charles Tomlinson e o mexicano Octávio Paz. Esse "renga" serviu para internacionalizar definitivamente o hai-kai como gênero poético pertencente à humanidade.

O futuro do Hai-Kai no Brasil

Quanto as perspectivas do hai-kai vir a se firmar no Brasil, Goga Massuda tem uma opinião bastante firme: "o hai-kai em língua portuguesa tem mais futuro do que o haiku em japonês, que está às beiras do padecimento". Ele alega a diminuição dos japoneses no Brasil, concomitamente a sua arte. "O haikai brasileiro descarta-se-á entre os hai-kais de outros países, no sentido de tal sensibilidade que adora a saudade e a hospitalidade", finaliza.

Em relação às traduções de hai-kais clássicos japoneses, fica uma crítica: porque temos que nos contentar com as retraduções? É um mal necessário, mas até quando? Eis uma questão para ser pensada ...
 

O hai-kai segundo Haroldo de Campos

Tânia Nomura

Desde 58, Haroldo vem traduzindo e publicando Hai-Kais, em traduções radicais ou "transcriações". Conforme explica no livro "Operação do Texto" (Perspectiva, 1976), "transcriar" significa reinventar no idioma de chegada (o português), as características estéticas operantes no texto de partida (no caso, o japonês). Haroldo se utiliza de dois procedimentos básicos: retoma o aspecto metafórico-etimológico do Kanji (ele estudou o idioma japonês em 57 e 58) e transpõe o nível visual do texto em japonês para o português através de recursos gráficos e tipográficos, pois o hai-kai também tem uma mensagem na própria formatação visual do ideograma. Seu mais recente trabalho na área ainda está inédito. Trata-se da "transcriação" integral da peça-poema "Hagoromo", uma das mais belas do repertório Nô. Para tanto, Haroldo contou com a colaboração de sua ex-aluna, Darci Y. Kusano e da professora Elza Taeko Doi, que prepararam a versão traduzida do texto (transposição fônica, tradução literal e interpretação gramatical do original japonês), que foi trabalhada micrologicamente com técnicos de poesia de vanguarda na reelaboração e estética do texto.
 
Haroldo afirma que para responder satisfatoriamente aos desafios de transpor um original com o máximo de fidelidade para outro idioma, é preciso ter extrema competência no domínio da linguagem poético-literária do próprio idioma.

Haroldo conta que quando se estuda uma língua como o japonês, cuja escrita é parcialmente ideográfica e cuja poesia contém uma tradição caligráfica refinadíssima, que já não se distingue das artes visuais, a primeira coisa que entra em cheque é o preconceito "logocêntrico", que caracteriza o discurso ocidental, que é regido pela concepção aristotélica de princípio, meio e fim que caracteriza a metafísica de origem grega, em contraposição ao pensamento analógico oriental.

Por uma ironia do destino, Mr. Campos realizou todo um trabalho de pesquisa e divulgação da cultura japonesa sem jamais ter pisado no Japão. Alô entidades de divulgação cultural!... Pescaram? ...



Encontro Brasileiro de Haicai

12 de junho de 2004

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