X-Authentication-Warning: obelix.unicamp.br: petidomo set sender to haikai-l-owner@unicamp.br using -f Date: Sat, 24 Oct 1998 15:54:43 -0200 To: HAIKAI-L From: KakiNet Subject: [HAIKAI-L] Re: história da lista Reply-To: haikai-l@unicamp.br Sender: haikai-l-owner@unicamp.br Amigos da haikai-l: Continuando com nossa serie "Saudade nao tem Idade", reproduzo algumas discussoes travadas em abril de 96. Inicialmente, o trecho de uma mensagem postada em 16/04/96 pelo Professor Paulo Franchetti, onde sao citados alguns haicais classicos escritos por mulheres. O haicai abaixo, famosissimo, e' de Chiyo-jo (1701-1775): > A trepadeira > Enrolou-se toda no poco - > Busco agua no vizinho. > (este e o verso mais famoso de Shiyo-jo. Mas nao > consegui dar dele uma boa traducao. Praticamente > todos os viajantes ocidentais traduziram > esse poema. A ideia e a seguinte: quando a Chiyo-jo > foi, certo dia, buscar agua no poco da sua casa, viu > que a asagao (uma planta: bons-dias, em portugues) se > tinha enroscado na corda. Foi entao, para nao incomodar > ou machucar a planta, buscar agua no vizinho) > > No dia seguinte, o Professor Paulo transcreve um comentario extraido de Blyth: >Ja agora, vai tambem o comentario de Blyth, que sempre >e muito idiossincratico: > >"What is wrong with this verse is not that she is, or appears to be, >boasting of her aesthetic tenderness of mind, but that the sudden >perception of the frail sweetness of the tendrils of the morning-glory >has no (poetical) connection with the going next door and asking for a >pail of water. >Oddly enough, women poets have a tendency to be moralistic and even >philosophical." >Blyth, R. H. Tokyo, Hokuseido, 1963, p.219. > > Ao que a Professora Marisa Lajolo rebate: >sobre o comentario de Blyth: quem e quem para dizer que alguma coisa " is >wrong" em poesia ? e quem e quem para julgar " atitudes" (boasting her >aesthetic tenderness of mind) atribuidas a poetas. Nessa linha, radicalizando o >mau gosto critico, poder-se-ia dizer que a emocao estetioca era falsa pq >mesmo " enternecida" ela continuou, pragmaticamente, a ir buscar agua...Moral >da historia poeta que e poeta tem de morrer de sede ! Em tempo: so podia >ir buscar agua se fosse para regar outra plantinha, uma sun-set glory, prov avel >mente ! marisa lajolo > No dia anterior, Gabriel Antunes postara mensagem sobre um assunto diferente, lancando uma discussao paralela: > >Prezados, >gostaria que alguem comentasse a traducao de Decio Pignatari publicou no >Suplemento (marco de 1996, no.11, Belo Horizonte, SEC - com exemplar na >biblioteca do IEL Unicamp) de um haicai de ISSA(1763-1827): > >Hito chirari konoba mo chirari horari kana > >pouca gente >folha pouca >indo aqui e ali > Contribuimos com a discussao citando a traducao de Blyth (sempre ele!): > >People are few; >A leaf falls here, >Falls there. > >Segue o comentario de Blyth: > >"To know that people are leaves, that leaves are people, without _thinking_ >so, without making any odious comparisons, - this is the religious and the >poetical life. Issa has expressed this life in the most colloquial >language, and in doing so, has hidden its depth and wonder under a veil of >casualness." > > A Professora Marisa Lajolo, respondendo a esta mensagem e aludindo a outra, de dias atras, onde o Professor Paulo citou pela primeira vez na Lista o kigo (e seu "convencionalismo"), escreveu: >relativamente a traducao de ISSA: como fica a questao da inventividade se >se pode dizer que certas palavras, em certos generos, sao sempre usadas em >certos sentidos ... ?? !! nao fica tudo meio sem graca ? Eu acho que fica ! >marisa > O Professor Paulo Franchetti fara' convergir estes dois assuntos em 18/04/96: > > > >E agora ponho de novo aqui "a do velho Alcmenon invencao rara", >isto e, no dizer gongorico, a minha colher. > >A discussao me parece boa. >Quanto a traducao do Decio Pignatari, nao acho que seja uma gracinha >concretista. Acho que e mais uma sem-gracice concreta, mesmo. Nao >tem pe nem muita cabeca. >Ja as questoes que a Marisa apresenta sao realmente interessantes. >A poesia de haikai (e um dia vamos ter de conversar sobre o que >sao esses nomes todos: haikai, haiku, haicai) e de fato extremamente >codificada. Sendo uma pratica coletiva, produzida em situacoes muito >especificas, numa sociedade estratificada e tradicional, e bastante >diferente, em principio, do que nos chamamos modernamente de poesia. >Mesmo o terceto isolado, o haiku, esta sujeito a codigos muito >enraizados: as expressoes indicativas da estacao do ano, por exemplo, >sao codificadas, e repetem-se interminavelmente nos varios textos >(akikaze ya e' um verso que encontramos a torto e a direito, harusame >ya, e' outro, e ha tantos... atsusa kana, lua de outono, lua de verao, >vento de outono, primeiras neves, flor de ameixeira, folhas caidas, >primeiras folhas verdes, etc etc). Ha estados de espirito tradicional- >te associados a essas expressoes, ha versos famosos que cristalizaram >algumas delas, de modo que boa parte da beleza do haikai ou haiku nao >provem da originalidade das palavras, mas do dialogo com as expectativas >do leitor e com a tradicao. >Ja quanto ao segunto ponto: a idiossincrasia do Dr. Buraisu... Quando >ele comenta um poema, como no caso do de Issa, o poema se ilumina para >nos, porque ele traz na frente dos nossos olhos a leitura tradicional, >i.e., baseada na tradicao. Mas quando ele e normativo, porque so aprecia >no haikai aquilo que o haikai tem de especifico segundo o seu ponto de >vista, as vezes parece excessivo. No entanto, devo dizer que concordo >inteiramente com ele, no caso do poema da asagao: e um texto afetado, >que nao tem gosto de haikai, moralista, sentimental e, por isso, dentro >da estetica do haikai, falso. > >Um ultimo ponto: um concretista provavelmente responderia como o proprio >Decio Pignatari (o caso vem narrado em algum lugar do Teoria da Poesia >Concreta), quando certa vez disse que nao precisava ser um samurai para >poder degustar uma obra japonesa. E verdade, mas em se tratando de >tradicoes tao distintas, se nos aproximamos de um haiku apenas com >os dados da nossa tradicao teremos provavelmente tanta pertinencia >quanto um chines que, sem saber nada de mitologia classica, se debrucasse >sobre esta estrofe de Gongora (em traducao literal, que cometi agora mesmo >e rapidamente): > >Era do ano a estacao florida >em que o mentido roubador de Europa >- meia lua as armas da sua testa, >e o sol todos os raios de seu pelo - > luzente honra do ceu, >en campos de safira pace estrelas; >quando o que ministrar podia a taca >a Jupiter melhor que o rapaz de Ida, >- naufrago e desdenhado, alem de ausente - > lacrimosas e doces queixas > da ao mar; que condoido, > foi `as ondas, foi ao vento > o misero gemido, >segundo de Arion doce instrumento. > >As chances de o nosso hipotetico chines ignorante de mitologias >e de horoscopos entender que um rapaz belissimo naufragou >na primavera, mais precisamente quando o sol estava no signo >de Touro, seriam minimas. Que observasse a pericia com que o tema dos >amores de Jupiter vem em contraste com a infelicidade >dos amores do rapaz, que sera a personagem central do poema, >menores ainda. Perderia ele entao, embora pudesse >traduzir o poema de alguma forma, o que e mais brilhante nele >e mais especifico do codigo poetico em que foi composto. > >Paulo > > Um abraco. ---------------- Edson Kenji Iura http://www.kakinet.com mailto:kakinet@mandic.com.br ---------------------