X-Authentication-Warning: obelix.unicamp.br: petidomo set sender to haikai-l-owner@unicamp.br using -f Date: Mon, 09 Nov 1998 22:47:31 -0200 To: HAIKAI-L From: KakiNet Subject: [HAIKAI-L] Re: história da lista Reply-To: haikai-l@unicamp.br Sender: haikai-l-owner@unicamp.br Amigos da haikai-l: Continuando com nossa serie "Vale a pena ler de novo", reproduzo um duelo epistolar travado entre o Professor Paulo Franchetti e o poeta paranaense Domingos Pellegrini, durante o mes de maio de 1996. Alguma edicao foi necessaria, pois 'a epoca a Lista nao aceitava acentos, e os textos inadvertidamente acentuados eram truncados. Como todos os embates desta Lista, este tambem terminou sem mortos nem feridos. O resto da mensagem e' longo, e aviso aos que nao tem muito tempo que parem por aqui. Um abraco ----------------- >Date: Sun, 26 May 1996 21:43:25 -0300 >From: PAULO FRANCHETTI >Subject: Re: Domingos Pellegrini > > >Prezados membros da haikai-l: > >Hoje, domingo, dia 26/maio, Edson enviou-me copia do e-mail >de Domingos Pellegrini, enderecado ao Sr. Koga (trata-se, >claro, de Masuda Goga) e discipulos (entre os quais me >incluo, no Gremio de Haicai Ipe). >E' um documento muito interessante, escrito por um poeta com >varios titulos publicados. Por isso, alem de responder >em e-mail diretamente ao poeta, faco uma copia para a lista, >de modo que outros interessados no assunto possam opinar. >O texto chegou-me em Eudora. Aqui, corre em formato ascii, >portanto 'e possivel que alguma letra acentuada tenha sido >convertida erradamente. No geral, porem, creio que o texto >esta bem legivel. >Minha resposta vem logo depois da carta de Pellegrini. >Um abraco, >Paulo Franchetti > > >>Date: Sun, 26 May 96 11:05:31 -0700 >>From: Domingos Pellegrini >>To: kakinet@dialdata.com.br >>Subject: (no subject) > >>Prezado Senhor Koga e discipulos: >> >>Ja ouviram falar da Semana de Arte Moderna? Naquele ano >>de 1922, foram abolidas as formalidades poeticas, tais como >>metrica classica e ritmo cadenciado. >>Tenho visto por ai praticantes do haicai preocupados com >>5-7-5 versos (alias, como se a intensa imagetica possivel >>atraves da sintetica Lingua Japonesa, fosse possivel de >>transpor para a "Ultima flor do Lacio", esta prolixa Lingua >>Portuguesa.) >>como ver prisioneiros, que sairam da prisao, mas ainda continuam >>acostumados a comer a horas tais, a falar baixo, a andar >>como se ainda arrastassem grilhoes nos pes. >>Acredito que nem mesmo o espirito do haicai deva ser >> respeitado, muito menos as regras de que deva conter alguma >> referencia a natureza ou a estacoes do ano etc. >>A unica coisa que vejo necessaria manter e a estrutura >>de cinco versos, inclusive pouco importando o tamanho deles >>ou a sua ordem, o maior no meio ou primeiro ou depois. >>Serei barbaro ou moderno? >>O que sei, com certeza, e que a regua que mede a arte >>tem o tamanho de cada artista... >>Os meus haicais, por exemplo, admitem toda forma, desde >>que triade (inclusive a forma de pensar deve ser triade, >>nao? Creio que este, sim, o fundamento que importa). >>Ai vao alguns haicaipiras, como chamo. O primeiro, e >>melhor ate ser lido com pronuncia caipira: >> >> Carma, assim e a vida >> quanto mais longa >> mais cumprida >> >> >> O orgulho >> de olhar teu brilho >> no olho do filho >> >> Umas vermelhas >> o outono pinta as arvores >> outras amarelas >> >> (A Leminski: >> >> Ameixas >> ame-as ou deixe-as) >> >>Ameixas, como amendoas >>tendo-as, deixa-as >>nao tendo, te queixas >> >> Quando estou ali >> dando pipoca aos pombos >> estou me alimentando >> >>A paina, alvo engano >>e a neve possivel >>neste meridiano >> >> Cruzeiro do Sul >> flor do Brasil >> no ceu >> >> Por que nao nasci, pombas >> linda pitomba, barro de maromba >> bumbo de festa de arromba? >> >> (Ou entao, pombas >> por que nao nascemos >> leitoes ou crisantemos?) >> >>(Ou alguem me responda >>ao menos, pombas >>por que e que nascemos?) >> >> >> Quebra a modelagem >> a porcelana perfeita >> e bobagem >> >> Ate outra >> se Deus >> caquiser >> >> > >Prezado Domingos Pellegrini: > >achei divertida sua carta. Que passo a responder e comentar. >Em primeiro lugar, claro que ja ouvi falar da Semana de Arte >Moderna. Quem nao tera ouvido? Sua pergunta, por certo, >envolve uma certa ironia. Como tambem so numa clave >ironica posso ler a sua surpreendente afirmacao de que >"naquele ano de 1922, foram abolidas as formalidades >poeticas, tais como metrica classica e ritmo cadenciado." >A principio pensei que estava lendo um contrassenso >muito ignorante, indigno de voce. Afinal, os "Four Quartets" >foram escritos depois desse ano magico de 1922, bem como >muitos poemas de J. L. Borges e tantos outros. Pensei ainda >que, por sorte, os Sonetos a Orfeu (de Rilke) foram compostos >justamente em 1922 - o que os salvava de serem anacronismos >abolidos pela nossa Semana -. Pablo Neruda e' mesmo anacronico >e seus poemas de forma fixa; bem como Eugenio de Andrade, que >mesmo depois de 1922 (e ate hoje!), insiste no ritmo cadenciado >(seja la o que for isso), ou Pessoa que continuou com aquela des- >gracada pratica da ode neo-classica sob o pseudonimo de Ricardo >Reis ate o final da vida. Pessoa fez ainda mais: pouco antes >de morrer, ignorando por certo a abolicao do metro classico >e do ritmo cadenciado pelos Modernistas brasileiros, publicou, >como sabe, o seu Mensagem, cheio dessas quinquilharias. E havia >ainda Lorca, que como so foi assassinado depois do Modernismo >brasileiro, ainda compos o Romancero Gitano, os Tres Romances >Historicos e inumeros gazeis e outras coisas canceladas, >segundo diz, pela nossa Semana. >Nem mencionemos Yeats, Drummond ou mesmo Joao Cabral. >Pensei ainda que talvez o carater fatidico de 1922 encontrasse >um reforco na obra de Valery, que nesse ano publicou seu ultimo >livro de poemas, em que vem tantos com metro tradicional. Mas >depois conclui que era apenas uma piada essa coisa de achar >que um movimento literario de deslumbre provinciano, num canto >do mundo, tivesse o poder que nao tem uma bula papal, um >decreto da ONU ou outros diplomas do genero. >Entao me diverti muito com a sua ironia. >Logo a seguir, li que voce deplora que haja "por ai >praticantes do haicai preocupados com 5-7-5 versos". >Bom, eu tambem nao ligo muito para isso e ja estava >disposto a concordar com voce e iniciar a leitura num >registro serio, abandonando a ironia, quando, continuando, >deparei logo com esta frase parentetica notavel: >"(alias, como se a intensa imagetica possivel atraves >da sintetica Lingua Japonesa, fosse possivel de transpor para >a "Ultima flor do Lacio", esta prolixa Lingua Portuguesa.)" >Apreciei a piada bilaquina com um sorriso palido, mas nao deixei >de me espantar com a frase categorica: entao a lingua japonesa >e' sintetica e a nossa e' prolixa? Muito bem. Estudei muitos >anos as duas, e acho realmente dificil dizer isso assim abstra- >tamente. Nao creio tambem que seja obvio que a imagetica tenha >a ver com a sintese, assim tao direta e simplesmente. >Se dissesse que a lingua literaria japonesa do sec. XVII e >sintetica, talvez em algum sentido concordasse, sem que isso >implicasse qualquer contraposicao a "Ultima flor do Lacio", >que tambem e muitissimo sintetica. Mas tudo isso e uma >generalizacao sem sentido, entendi depois. Certamente >parte da mesma ironia... >Mais adiante, os discipulos do Goga sao comparados a >"prisioneiros, que sairam da prisao, mas ainda continuam >acostumados a comer a horas tais, a falar baixo, a andar >como se ainda arrastassem grilhoes nos pes." >Aqui entendi que satirizava os lugares-comuns >sobre o Modernismo e sobre a Modernidade, e que, >contrariando a famosa declaracao de T. S. Eliot (a de >que nao ha verso livre para quem quer fazer boa poesia), V. >se deixava levar gostosamente no ritmo das banalidades que >repetem os professores de cursinho e as estorias literarias >de baixo nivel... E entao pude me divertir com a sua ironia, >mais uma vez, decidido que esse era mesmo o registro do seu >texto. >Finalmente, V. se excedeu. E eu fiquei realmente rendido e >deliciado. Disse V. que acredita que "nem mesmo o espirito >do haicai deva ser respeitado, muito menos as regras de que >deva conter alguma referencia a natureza ou a estacoes >do ano etc." Isso e que e ser moderno de verdade: >abaixo todas as regras! Mas ficava entao uma pergunta no espirito >do leitor: entao, se nao ha nenhum espirito e nenhuma regra >a definir o haikai, o que faz que um determinado >texto (os de sua autoria, p.ex.) seja chamado de haikai? >V. responde logo, embora trocando as bolas, digo, os numeros: >"A unica coisa que vejo necessaria manter e a estrutura de >cinco versos, inclusive pouco importando o tamanho deles ou >a sua ordem, o maior no meio ou primeiro ou depois." Que grande >arte a sua, que capacidade de proceder a uma demonstracao >pelo absurdo. Brilhantemente, voce reduziu a po o argumento >com que iniciou o seu texto. Veja: voce, que comecou com uma >parodia de modernices, agora reivindicava o mais chocho e >insosso formalismo, o mais exterior e bocal: tem 3 versos? >quaisquer que sejam o tamanho e a ordem e o assunto? >Pois entao nao ha duvida: e haikai! >E' espantoso, caro Domingos! E' realmente um primor! >Finalmente, para nosso deleite, pergunta voce: >"Serei barbaro ou moderno?" >Num registro serio, voce obriga o leitor a responder qualquer >outra coisa, na linha da ignorancia, talvez. >No seu registro ironico, e' claro que e'moderno! >E' modernissimo! >Por fim, as outras piadas tambem sao otimas: a regua de >cada artista, o pensamento por triades, os haicaipiras. >Tudo muito divertido! >E quando voce diz que os poemas ficam ate melhores >quando lidos com pronuncia caipira, voce usa com maestria, >para encerrar, esse recurso tremendo que e a autoironia. >Rachei de rir! >Ate a proxima. >Paulo > > ---------------------- >Date: Tue, 28 May 1996 21:16:32 -0300 >From: PAULO FRANCHETTI >Subject: Pellegrini para Franchetti > >From: IN%"pellegri@sercomtel.com.br" "Domingos Pellegrini" >To: IN%"FRANCHET@TURING.UNICAMP.BR" >CC: >Subj: Hay, caipiras, sim, e como! > > Ultrajado Franchet: > > A unica forma de abalar academicismo e nao levando a serio. > Mas, antes de mais nada, deixe-me praticar os que os comunistas >tanto gostavam de pregar e tao pouco de praticar: autocritica. > Primeiro, por nao ter revisado o texto que enviei a Goga, que >tratei de Koga; desculpem, mestre e discipulos. > De resto, a verdade e que nao presto. Uso mesmo a ironia e a >provocacao para fazer "sair da casca" do formalismo, ate nas relacoes >sociais, os academicistas. > O que eu quis dizer - e e facil de entender para quem esta a >fim de ver sem travas - e que, depois da Semana da Arte Moderna, aqui >entre nos, esse negocio de ficar ditando regras e bobagem. Nao que nao >se possa mais usar metrica, ritmo cadenciado (que tanto tornou enjoativa >a poesia tradicional). A arte, depois do Modernismo, e livre, inclusive para >cultuar a tradicao, como fazem os trovistas (e os haicaistas academicos). > Aproveito, entao, para lancar um movimento, via voce (e o >primeiro que contato/desacato via Internet). > O Movimento Restauracao (ah, como eu gostaria de saber lidar >com esses malditos comandos de negritos e italicos, e como seria bom se, >depois de negritar e italicar, eles se mantivessem negritados e italicados >pelos canais eletronicos. A gente digita uma coisa aqui, sai outra coisa la. >Lembra o jornalismo, onde a gente diz ao reporter uma coisa e sai >outra...) > Mas voltemos as vacas poeticas. > O Movimento Restauracao visa, alem de proclamar a propria >presuncao: > - Restaurar/reciclar as formas tradicionais (que e nada mais que >fez o Leminski, em grande parte de seus poemas, restaurando ate mesmo a >quadra, a mais tradicional forma de comunicacao poetica em Lingua >Portuguesa, nao?) > - Restaurar a intelegibilidade na poesia, soterrada pelas vanguardas >incomunicantes e linguagens tao subjetivas que a gente ate se pergunta: >ue, se o cara nao quer se comunicar, por que publica? > Ou, como diz Ferreira Gullar, usar "linguagem de gente". > Cansei desses ritos reverenciais a irmaos Campos e seus asteroides >de vanguarda, e tambem cansei de ler melifluas e nefelibatas linguagens >poeticas. > Quero ler e entender, quero entender e sentir! > A liberdade modernista trouxe tambem a picaretagem irrestrita na >arte poetica, que tambem campeia nas artes plasticas (com artistas >"praticos" enganando levas de novos-ricos). > So compro quadros de quem saiba desenhar (pode ser ate >abstracionista como Mabe, mas que saiba desenhar). Chega dos borradores de >telas! > So aceito como poesia coisas que entendo, em linguagem de gente. >Assumidamente. Prefiro ser caipira bronco do que mais um imbecil aplaudindo >imbecilidades em vernissages onde o que ha de mais artistico e a decoracao >do salao ou os canapes. > Tambem na poesia, enjoei mesmo, peguei ojeriza de poetices >vanguardistas e tambem de academicismos retros. > Cansei da ditadura da imprensa e seus idolozinhos de momento, >promovidos e desancados sistematicamente por ondas de modismo. > Viva Castro Alves e Augusto dos Anjos, Sousandrade e bom la > pros Campos dele. > > Ai vao alguns quadrais (haicais de quatro pernas, ou quadras >recicladas, sem o ritmo trovaico enjoativo, e com um jogo conceitual e >sintatico mais denso que os acrobaticos torneios de rimas e suspiros das >quadras degeneradas em trovas:) > > A brisa do Brasil > beija e balanca > as promessas divinas > da esperanca > > (Castro Alves adaptado) > > > > O que ha de vir > nao sei > fiz minha arte > curti meu dever > >Velhas folhas secas >deste beco >ate proces >existe um vento > > Em vez da violenta > prefiro > a forca lenta da hera > no muro > > Minha meia >testemunha cujos > dedos sujos >contam por onde andei > > Nao e tao simples > fazer o certo > confiar no incerto > perdoar sempre > > Vela, companheira > que se vai, mas > deixa lagrimas > de cera > > Sonhe e veja > o cerebro humano > talvez seja > o maior dos oceanos > > >Voce fanha >minhas pintas >Deus desenha >com varias tintas > > Que bom > o animal > e o menino em mim > negam-se a morrer > > > Nao estranhe, sou assim > os sonhos saem de mim > como o suor > e os feromonios > > Com voces > o Gozo e a Culpa: > - Desculpa > - Foi um prazer > > O que parece > no fundo pode ser > uma forma de trans > parecer > > (Alto! > Ate o proximo assalto!) > > > >----------- >Date: Tue, 28 May 1996 21:22:09 -0300 >From: PAULO FRANCHETTI >Subject: Pellegrini > >Prezados: >o Pellegrini agora me embatucou. Acho que briguei com o cara >errado, porque concordo com tudo o que ele escreveu nesta >carta: compartilho da ojeriza pelas igrejinhas, pelos sectarismos >concretos, acho tambem o Sousandrade um chato etc etc >De mais a mais, tambem sou pela restauracao do sentido na poesia >e pela comunicabilidade em geral. >E, por fim, os haiquadras que ele manda agora me parecem muitissimo >vivos, e alguns com o tal e real sabor de haikai... >Ora, vejam so! >Ja mandei para ele uma carta mais ou menos nestes termos, >e ele me respondeu muito de boa mente, num texto que posto >logo a seguir. >Vivendo e aprendendo... >Abracos virtuais, carissimos, >Paulo > > > >Date: Tue, 28 May 1996 19:19:55 -0300 >From: Domingos Pellegrini >Subject: Por meio desto presente... >To: franchet@TURING.UNICAMP.BR > > Por meio do presente instrumento, ouvidos meus herdeiros e >consultadas as praxes, normas e prolegomenos, autorizo que o Clube do Caqui >ou de qualquer outra fruta transmita meus E-textos (Enojantes textos) para >onde quiserem e como quiserem, ate porque, a nao ser que eu coloque >firewalls, qualquer espertinho pode entrar ate nas cuecas, para nao dizer >as entranhas, do meu computador. Minha vida, porem, e um livro aberto; as >vezes, parece que sempre na mesma pagina; e, de repente, as paginas comecam >a passar como se num furacao! > Tenho e que controlar a imaginacao, e aprender a escrever sem >acentos, depois de tanto estudar para aprender a acentuar direitinho desde >menininho. Os deuses da informatica sao crueis. > Agora, porem, sinto que e hora de rezar. A vontade de rezar me vem de >repente: > > Nao olho pro Ceu > nao bato no peito > a qualquer momento > rezo do meu jeito > > Rezo de repente > no meio da rua > tanto em lua cheia > quanto sem lua > rezo que me clareia > > Nao rezo por mim > nem por alguem > rezo por tudo enfim > rezo que so faz bem > > Rezo por estar vivo > e nao ser eterno > rezo que da alivio > e rezando me livro > deste inferno > > Mas rezo sobretudo > porque e gostoso > agradecer por tudo > milagres da natureza > desastres do mundo > a dor irma do gozo > a bencao da beleza > o tempo de menino > os coices do destino > e o diario renascer > tudo num segundo > entre vermelho e verde > numa esquina qualquer > de Londres ou Londrina > rezo que me ilumina > > (E tiao, que depois da reza > vou para a sauna seguida > de banquete e orgia! Ate > outro dia. Esta vida internetica > me cansa! Ter de escrever e > depois reescrever para tirar > os acentos, realmente, para > mim E demais! Vou ter de > desaprender a Lingua aos 46 > anos. Oh, Info-Deus...) > > > > > > > >Date: Thu, 30 May 1996 22:18:13 -0300 >From: PAULO FRANCHETTI >Subject: isto e muito, muito bom!!! > >Prezados haikai-leiros: > >como viram, engalfinhei-me numa briga com o Domingos Pellegrini, >a proposito de certas ironias dele. Depois das minhas exageradas, reatamos >a conversa, que passei para todos aqui da lista. >Pois agora o homem me derrotou de vez: mandou uma carta/poema/manifesto/ >resposta/diario/parodia-de-nikki/etc que e um arraso! Fiquei abestalhado, tenho >de me render: o sujeito e bom de prosa e bom de verso. Virei haicaipireiro, >restauracionista, etc. Rendi-me. Nao tem mais proximo assalto... >Estou mandando, como veem, copia por Pellegrini, ou para o lenhador que >o habita de vez em quando, sugerindo que, antes de descer a marreta no >pentium, pelo menos subscreva a haikai-l... >Divirtam-se, e aproveitem os *excelentes* haikais que vao abaixo. >Ate , >Paulo Franchetti > >-----------aqui comeca a carta do homem das montanhas paranaenses--------- > >30-MAY-1996 11:00:15.90=20 >from: "pellegri@sercomtel.com.br" "Domingos Pellegrini" >To: "franchet@TURING.UNICAMP.BR" >Subj: > > > Seja o que Deus quiser, maldita maquina. Quanto mais conheco, mais >ignorante me sinto. Mas deixa estar. Peguei uma marreta e botei aqui do >lado. Qualquer coisa, quebro este tal de pentium como ja fiz com o 486, o >386, o TXT e o Aple. > Negocio seguinte. Por meio desta, estou autorizando a penetracao, >isto mesmo, a penetracao infra ou intra kakinet, conforme me orienta >Mago Edson, com copia pra Deus e todo mundo. Prometo nao ser desbocado, >abusivo, provocador etc. > Alias, pretendo mesmo manter uma etica que se possa examinar de >qualquer otica, como se fazia na antiga Atica, esperando que faca um tempo >otimo (basta estourar uma bomba atomica na Ucrania, por exemplo, para tirar >do ar todos os computadores do mundo ao mesmo tempo; eh por isso que tudo >que escrevo, no computador, escrevo duas vezes: um amigo me disse que a >gente tem de se cuidar, fazer tudo com copia). > > Me apresento: sou um lenhador do Norte do Parana, que a noite usa o >computador do Domingos Pellegrini, enquanto o infeliz dorme roncando feito >um porco que comeu um boi. Venho do campo com as maos rachados de tanto >cortar lenha o dia inteiro, nas altas montanhas do Norte do Parana, onde o >vento venta tao violento que uso chapeu de chumbo amarrado com corrente. >Sento ao computador, e coloco aqui os haicaipiras, que sao haicais feitos >por mim, do meu jeito, nos momentos em que tenho de parar minha faina para >cuspir nas maos ou cortar com facao algum calo. Sao a parte feminina da >minha alma rude, por isso manterei pseudonimo: > > Bruto Grossura > Haicaipirista Florestal > > Meu primeiro haicaipira surgiu quando eu pensava no misterio da >existencia, ja que nao podia fazer outra coisa, pois estava cortando as >unhas com o canivete. Deve ser lido com pronuncia caipira para ser >perfeitamente entendido: > > Carma, assim e a vida > quando mais longa > mais cumprida > > > Foi escrito no barro mole de um barreiro, entre pegadas de animais >que ali faziam bebedouro. Dele me esqueci totalmente, dedicado a derrubar >perobas imensas com meu machado e minha serra (no tempo em que ainda nem se >falava em ecologia, quando derrubamos toda a floresta do Norte do Parana). >Sem a sombra da floresta, o barro endureceu, e se soltou em placas, uma >delas com meu haicaipira. Olhei aquilo, entao me veio o segundo haicaipira: > > Tenho uma baita > confianca no tempo > esse sirigaita > > Este, escrevi a canivete numa arvore, onde passei a gravar tambem >outros e outros haicaipiras, tantos que achei melhor desgalhar a arvore e >carregar pra la e pra ca, assim estava sempre a mao quando eu precisava=20 > anotar: > > Umas vermelhas > o outono pinta as arvores > outras amarelas > > Cheguei a me cortar escrevendo haicaipiras na minha primeira arvore >(com o tempo, formei uma florestoteca): > > Mais uma camisa > uma ferida > que cicatriza > > Na verdade, esperei que cicatrizasse, mas nao cicatrizou: > > Cicatriz > muito mexida > vira ferida > > Mas eu me consolava: > > Ate a dor > tem seu lugar > num dia bom > > Afinal, e preciso ser otimista para viver nas altas monhtanhas do >Norte do Parana: > > Todo dia e lindo > tempo fechando > tempestade abrindo > > Se os bichos me perguntam como vou, respondo cantando: > > Como vou? Vivendo > a poesia de cada dia > com sol ou chovendo > > Para mim, tudo e bonito, a vida e bela e os homens bons, mesmo >quando tenho de abater uma arvore debaixo de tempestade: > > Por melhor que vas, zapt > um dia sobre ti abate-se > a tempestade > > Os raios eram flashes iluminando a clareira onde eu derrubava tantas >arvores que eram trovoes no ceu e terremoto na terra, se terremoto na terra >nao for pleonasmo (frequentei escola antes de me apaixonar pelo machado). E >entao, as vezes no meio duma tempestade, eu parava para anotar com o toco da >lamina do velho canivete: > > Na verdade, diz > que acha a felicidade > quem se acha feliz > > E assim vivia eu, feliz matando urso a patada para ficar com o mel, >comendo tatu e palitando os dentes com beija-flor, quando uma coruja me=20 >avisou: > - Ih, Bruto, isso ai nao e haicai coisa nenhuma, queridao! > Um papagaio recitou que haicai tem de ter tantas silabas, falar das >estacoes do ano ou, pelo menos, de alguma coisa da natureza, nem que seja >uma folha caindo. Escrevi entao: > > Folha caida > miuda mortalha > da arvore em vida > > O papagaio riu: > - Desista! Nao e coisa pra um poeta bruto como voce, criado no meio >da mata feito um bicho, e coisa com regras e protocolo, processo e normas. > - E nao pode ser de outra forma? > Riu um bando de bem-te-vis, como quem diz quem-te-ve, infeliz!... > Fiquei triste e, arrastando meu machado com bromelias e orquideas >ainda enroscadas, fui para casa: > > Minha casa meu canto > meu aqui meu enfim > meu pouco meu quanto > > Em casa, logo esqueco a tristeza, porque gosto de cozinhar: > > O mundo e meu > quando caminho ao leu > ou cozinho > > Joguei no caldeirao uns patos, com pena e tudo pra dar gosto, e fui >preparar o tempero: > > A paz de descas > car uma cebol > a chorar > > Era naquela hora propicia para meditacao: > > A hora em que a tarde cai > e desde a noite enfim e sai > a lua enquanto sol se vai > > Minha cachorra Cleopatra veio lamber minha mao ferida, e tao abalado >estava com minha haicaipirice, que com um safanao afastei a pobre criatura >sempre tao apaixonada por mim, e logo me arrependi: > > Antes que morras > quantas vezes negaras > carinho a cachorra? > > Resolvi entao nao mais me abalar com criticas de corujas e >papagaios. Mas como esconder meus haicais das vistas dessa bicharada? Vivi >entao um daqueles lances que parecem de filme: memorizei todos os >haicaipiras, queimei minha florestoteca e passei a ruminar os versos >enquanto trabalhava, para nao esquecer. Ate que um passarinho me soprou: > - Oh, bruta ignorancia, ja ouviu falar de computador? > Foi assim, procurando por um computador, que desci das altas >montanhas em noite de lua alta, alta madrugada, tudo alto, ate eu que tinha >bebido o vinho de jaboticaba tipico do Norte do Parana. > No caminho, escrevi mais um jaicaipira a luz das estrelas: > > Cruzeiro do Sul > flor do Brasil > no ceu > > Achei a casa do Domingos pelo cheiro, ele estava dormindo com uma >sopa no fogo, cachorros lhe lambendo a baba da boca. Chutei para longe as >garrafas e foi entao que vi o computador. Ja estava ligando, e passei o >resto da primeira noite lendo manual de instrucao. Ele tinha entao um Aple, >que acabei quebrando a marretadas. Fiquei ate ele acordar no dia seguinte, >e espiei da janela: o imbecil achou que ele mesmo tinha quebrado o computador >antes de dormir tao bebado que os cachorros ficavam tontos de beber a baba >dele. > Ele comprava novo computador, um mais complicado que o outro, e eu >ia quebrando tambem um depois do outro, mas nao desistia: > > Tantos desistiram cedo > tarde demais, pensaram > > e anoiteceram > Passaram-se anos, e chegamos a este maldito pentium que esta por um >triz com a minha marreta, mais um deslise e reduzo esta jeringonca a >info-po. > Voltemos, entredentes, aos haicaipiras. Um dia, depois de pisotear >um 386 enquanto o Domingos roncava no sofa como se tivesse engolido uma >tuba, eis que na volta para casa, me cai na cabeca um pinhao, como com >Newton caiu a maca e com o Mazzaroppi a melancia. Descobri entao que os >haicaipiras podem ser duplos: > > Pinhao > caixinha perfeita > de lembrancas > > Dentro > meu coracao > de crianca > > E na noite em que inaugurei o 486, certa hora tive de sair na >varanda tal era o cheiro do Domingos dormindo com seus cachorros, e eis que >vi Londrina iluminada: > > Meia-noite em ponto > estou entre ontem > e outro minuto > > Jesus: a cidade assim > alfinetada de luz > parece imenso armazem > > Cristo > quem ganha com isto > quem? > > Com tanta iluminacao > talvez fizesse tao bem > a total escuridao > > Entao senti que os haicaipiras tem seu proprio jeito de ser, como >tudo na natureza, e me deu uma grande paz: > > Paz > nada pra frente > nem pra tras > > Passei a sonhar entao que um dia eu conseguiria mostrar meus >haicaipitas para alguem que entendesse e gostasse. > > Sonho > porque sei: o meu maior > patrimonio > > E continuei a escrever meus haicaipiras enquanto passava sede e >calor nos desertos onde antes era floresta. Se arrependimento matasse, eu ja >estaria comido pelas formigas ha muito tempo. Pensava comigo: mas isto tera >algum valor, significara algo para alguem? Mas, como se mandado pelo >destino, esse velho cabotino, continuei: > > Vou praticar-te > arte maior > de ser o que sou > > Passei a fazer haicaipiras sem peias nem meias: > > Quebra a modelagem > a porcela perfeita > e bogagem > > Ate para formigas e insetos fiz haicaipiras: > > Vai ser um inverno duro: > tantas trilhas de formigas > com migalhas de pao duro > > Por que me diga > formiga para: pra > conversar? > > Obrigado, insetos > por sempre e um dia ainda > me recolherem os restos > > Gratidao especial > a brigada de abelhas > que enfim me colhera > > Confusas como eu > profusas como flores > tantas formas de Deus > > Domingos esta resmungando, as vezes acorda para beber agua no meio >da noite, o cachaceiro. E tenho mesmo de ir, vai amanhecendo. Me sinto uma >Cinderela de botas e machado. Mal aprendi a lidar com este maldito correio >eletronico que volta e meia engole meus textos e nao devolve mais, entao >agora digito tudo tres vezes por via das duvidas. > Meu apelo, se isto chegar a alguem, e simplesmente este: havera >outros caipiras como eu no tal mundo cibernetico? Adeus! Domingos acorda! >Adeus, adeus! Malditos comandos, maldito computador, sera que vou consegu > >----------------------e aqui, termina, interrompida no u de consegu, >a referida carta do lenhador-Cinderela------------------------------- >------------------------ > > > *=*=*=*=*=*=*=*=*=*=*=*=*=*=*=*=*=* ---------------- Edson Kenji Iura http://www.kakinet.com mailto:kakinet@mandic.com.br ---------------------