X-From_: haikai-l-owner@unicamp.br Tue Jan 5 01:26:32 1999 Return-Path: X-Authentication-Warning: obelix.unicamp.br: petidomo set sender to haikai-l-owner@unicamp.br using -f Date: Tue, 05 Jan 1999 01:26:17 -0200 To: HAIKAI-L From: KakiNet Subject: [HAIKAI-L] Re: história da lista Reply-To: haikai-l@unicamp.br Sender: haikai-l-owner@unicamp.br Amigos da haikai-l: Continuando com nossa serie "A Maquina do Tempo", em fasciculos aproximadamente quinzenais, reproduzo uma discussao surgida apos o termino de nosso segundo renga, que postamos em 20 de dezembro ultimo. *************************************** >Date: Tue, 19 Nov 1996 11:54:56 -0200 >Sender: haikai-l@cesar.unicamp.br >From: Flavio de Castro >Subject: Sobre o renga > > > Foi mesmo uma experiencia interessante o segundo renga.Mostra de >certa forma como estamos distantes de uma grande aspiracao do surrealismo >que so a poesia japonesa tem condicoes de realizar nos dias atuais : >a producao poetica coletiva. > Nosso renga esta sem unidade, sem um respeito maior pelo signo que >nos sustenta. neste renga, a topica sazonal passa quase que desapercebida >e ainda muito confusa. Sao peixes, flores, versos e autores.Nao >caminhamos num unico caminho, sequer circulamos ao redor da primavera. >Imagino ainda que com o advento da nomenclatura dos autores consoante a >respectiva estrofe,, nosso renga estara mais proximo de tornar-se uma >vitrine eletronica de haikaistas imperfeitos.Por favor. lembrem-se que >quem fez este renga foi a nossa lista, foi o nosso grupo, nosso amontoado >de individuos que cultivam essa pratica tao impessoal, e nao distintos >cidadoes que pedem por soberania em meio a uma democracia de versos! > O renga e uma realizacao coletivo:que isso pese demais sobre os >teclados na ocasiao de um terceiro renga, seja la como for. > O segundo renga deve permanecer no arquivo e na memoria , >pra lembrarmos-nos sempre que precisamos viver com os proprios erros. >Que no terceiro, a estacao brote em nos, fale atraves de nos.Nos somos >um bando, que de um jeito ou de outro, peregrina unido por caminhos >desconhecidos, assim como fez Basho e seus discipulos. > > > ate o terceiro renga'! > > gaijin-chan > > > "O sino do templo para de tocar > mas o som continua vindo > nascido das flores" > Basho > > *************************************** >Date: Tue, 19 Nov 1996 21:21:24 -0200 >Sender: haikai-l@cesar.unicamp.br >From: PAULO FRANCHETTI >Subject: Comentarios sobre renga e haikai > >Prezados amigos da haikai-l: > >Acabo de ler a carta do Flavio Gaijin-Chan. Tinha >algumas coisas a dizer sobre ela. Mas vou me concentrar >em duas. A primeira e' a questao do kigo (palavra de >estacao) no renga. Do jeito que esta' na carta, parece que >o seu autor acredita que todas as estrofes de um renga >devem dizer respeito `a estacao em que aquele renga foi >composto. Nao e' verdade. A primeira estrofe, sim, >obrigatoriamente. As demais, pelo contrario, devem fazer >com que haja uma alternancia nas estacoes, de modo que >o ano, ou os anos, va passando no renga, `a medida que >ele transcorre. Um renga, assim tem muito de imaginario. >As estrofes devem ser objetivas, sim, mas de uma >objetividade imaginada. Ouve-se (porque no renga uma >estrofe e' declamada duas vezes, para que o proximo >poeta encadeie nela a sua continuacao) uma estrofe, >deixa-se levar pela estrofe antecedente imagina-se ou >sente-se uma cena, e depois diz-se a sua estrofe. Basho >dizia que se era preciso sentir o que foi dito e tudo o que >nao foi dito (as mil nuancas do inexpresso ) na estrofe >que e' proposta, para so' depois encadear. > >Outro ponto que queria discutir, embora nao seja >diretamente, mas apenas indiretamente, aflorado na carta >do Gaijin-Chan e' o seguinte: ja' ouvi muitas criticas (ou >reclamacoes, ou lamentos) sobre a grande quantidade de >poetas de haikai, ou sobre a baixa qualidade poetica de >muitos e muitos livros de haikai. Ora, o haikai nao e' >poesia, no sentido que essa palavra tem na nossa tradicao. >O haikai e' atividade. Pode tambem ser poesia, e das >grandes, mas nunca deixa de ser atividade, um modo de >ser e de estar no mundo, alem de uma pratica social. >Pessoalmente, acho que essa e' uma das coisas que o >haikai tem a nos oferecer enquanto experiencia nova e >exotica: uma pratica democratica de escrita, em que a >expressao das sensacoes e sentimentos nao e' privilegio >de uns poucos iluminados ou de uns tantos peritos da >palavra. Escrever haikai hoje e' algo muito diferente de >escrever *poesia* hoje. O haikai tem regras claras que >nao sao nao sao apenas formais. Algumas, nem mesmo >nos parecem lieterarias. Por exemplo, a vontade estrita de >objetividade e de veracidade. Outra: o julgamento do >valor do verso em relacao `a situacao em que foi >produzido. Assim, Basho podia valorizar um verso >diferentemente, dependendo de quem o tinha escrito. >Tambem por isso, pode-se comentar, quando alguem >traduz o furu-ike-ya assim: velho tanque - o sapo salta, o >som da agua - que a traducao e' ruim porque o resultado >esta' simplesmente errado enquanto haikai. Nao tem nenhuma >importancia que sapo faz aliteracao com som e salta. >E' mau haikai porque os sapos nao pulam na agua, >quem pula na agua e' a ra... >E e' tambem por todas essas questoes que uma das mais >duras criticas que se pode fazer a um haikai e' dizer que >e' afetado, isto e' inveridico, falso num certo sentido. >Essas consideracoes vem aqui apenas para dizer que o >haikai e' uma pratica que, embora sem duvida seja >tambem literaria, e' muito mais (ou muito menos) do que >isso: e' uma atividade praticada em grupo, um >passatempo, um caminho de vida, o que quiserem - mas e' >fundamentalmente uma pratica culta (o que nao quer de >forma alguma dizer que e erudita), aberta, muito >democratica e - aqui esta' uma grande coisa! - que se pode >e se deve aprender por meio do exercicio, da imitacao e >da observacao. >Dai' que me irrite um pouco o ar snob com que algumas >vezes algumas pessoas (nao e' o caso do Gaijin-Chan, >agora ja' falo de outras coisas) fazem de conta que >lamentam o grande entusiasmo com que o haikai e' >praticado, o grande numero de pessoas que fazem versos >em forma de haikai e o grande numero de livros e folhetos >de haikai publicados todos os anos. Ora, o haikai nao e, >nem nunca foi, restrito a um determinado grupo social. e, >desde a origem, justamente o contrario: uma contrafaccao >do renga erudito, praticado apenas por pessoas cultas em >situacao formal cortesa. O haikai era a poesia dos >comerciantes, da gente media e miuda, a poesia que se >podia aprender com um mestre e que tanto podia ficar >restrita a divertimento para alegrar os seroes, quanto se >constituir num dos caminhos tradicionais de >aprimoramento espiritual, como a ikebana e a arte do cha, >para citar apenas duas atividades muito conhecidas. >Acho que e' otimo que todos facamos haikai, e que ja' >estejamos no terceiro renga. Nao tem importancia que o >nosso renga seja sem regras, apenas uma pratica coletiva >de fazer versos, nem que esta ou aquela estrofe seja ruim. >Aos poucos nos vamos aprimorando e construindo um >nosso caminho de haikai. Com a contribuicao de todos os >erros, para parodiar Oswald de Andrade. O que importa e' >manter justamente a vontade de aprender a olhar o trato >com as palavras por um outro angulo, valendo-nos do >exotismo da forma japonesa para aproveitar dela, como ja' >disse uma vez, aquilo que ela nos traz de diferenca, de >alteridade. Portanto: de novidade e desautomatizacao. O >resto nao deve ter muita importancia. Afinal, quantos de >nos ficarao para a posteridade como grandes poetas do >final do seculo XX? Ja' que provavelmente nenhum, que >componhamos entao os nossos versos em paz e sem >culpas, tentando apenas fazer o melhor possivel a cada >momento. >Era isso. Desculpem o texto tao longo. >Um bom terceiro renga para todos nos! >Continuo aguardando tercetos para poder escolher um >bem promissor com que iniciemos a terceira sessao. >Ate, >Paulo > > *************************************** >Date: Tue, 19 Nov 1996 22:23:13 -0200 >Sender: haikai-l@cesar.unicamp.br >From: Francisco José Soares Feitosa >Subject: Re: Comentarios sobre renga e haikai > > Caro professor Paulo e demais haicaistas: > > Era proposito meu nem retornar por aqui mais depois >de umas palavras rispidas que ate' ja' esqueci quem as disse. > > Mas a sua carta e' tao gentil e pessoas outras por aqui tao >amaveis, que nao me conti e venho trazer uma indagacao para nos, >nordestinos da linha do Equador muito importante: > > Se as estacoes sao fundamentais para abrir o tema, ou >ainda absolutamente fundamentais nao so para abrir o tema mas >tambem para tangenciar todo o tema - e nos outros que nao temos >estacoes por aqui como ficamos ? > > Aqui no Nordeste, Ceara' de onde sou >e de ondo colho toda a minha fraca memoria poetica nao temos essa >historia de primavera, outono, inverno verao. Aqui temos apenas >sol e chuva, esta de muito pouco. Chegamos ao basurdo de dizer "tempo >bonito" quando e' tempo de chuva - depois descobri que esse bonito >queria dizer "bonito pra chover..." > > Assim, caro professor Paulo, se nao temos estacoes no >sentido tradicional, como podemos participar ? Alias, temos, temos >uma unica estacao: sol! E umas poucas chuvas durante o ano que >muitas vezes chove de noite. > > O periodo invernoso o chamamos de >inverno; tudo que nao seja chuva e' verao para nos, de modo que, >nordestinos nos assombramos com a tal chuva de verao dai do sul. > > Com um abraco do Soares Feitosa, gente do sol. > > > > *************************************** >Date: Wed, 20 Nov 1996 06:24:41 -0200 >Sender: haikai-l@cesar.unicamp.br >From: PAULO FRANCHETTI >Subject: Re: Comentarios sobre renga e haikai > >Prezado Feitosa: >pouco tenho a dizer sobre o que me pergunta, pois nao conheco >assim o Nordeste... Mas me lembro bem de quando morei um ano >em Cuiaba, o lugar mais quente do pais. Embora nao tivessemos >la estacoes (a rigor, nem em Sao Paulo temos estacoes bem >delimitadas), era muito claro um ritmo natural que marcava >profundamente a vida das pessoas. Outubro (se nao me engano) >era o mes mais seco, em que sempre havia fumaca no ar por conta >das queimadas do capim dos terrenos baldios; havia o tempo das >mangas, a chuva do caju, o tempo do caju, o verao com o sol a pino >e 45 graus de temperatura, a unica semana de frio, a nevoa >que em certa altura do ano cobria a lua, a epoca das chuvas >regulares no final da tarde, o calendario das festas populares, >os peixes mais comuns de cada estacao, a enchente e a vazante >do Pantanal ali vizinho. Enfim, havia um claro ritmo que >podemos considerar sazonal, apesar de climaticamente ser >quase sempre a mesma coisa... >Ja ai no Nordeste nao sei, mas tenho dificuldade de pensar >que nao seja a mesma coisa, quero dizer, que observando >bem o ritmo da vida tenha variacoes regulares e recorrentes. >Estacao, em haikai, mesmo no Japao, nao e apenas a meteorologia, >mas o conjunto das atividades humanas que se exercem sobre >um quadro natural, que tem um enquadramento natural e periodico. >Um abraco, >Paulo > > *************************************** >Date: Wed, 20 Nov 1996 08:26:12 -0200 >Sender: haikai-l@cesar.unicamp.br >From: Francisco José Soares Feitosa >Subject: Re: Comentarios sobre renga e haikai > > Caro Paulo: > > Reli seu comentario anterior e pincei: > >"E' mau haikai porque os sapos nao pulam na agua, >quem pula na agua e' a ra..." > > Veja, os sapos de minha terra pulam na agua e o fazem >com grande alegria... mesmo porque nao ha nenhum impedimento >tecnico - ojeriza dos sapos a agua ? - que impedisse deles >pularem nagua. Sapos e ras; pererecas, ca=E7otes e cururus - >todos os batraquios desta terra, inclusive este seu criado, >pulamos n'agua sem nenhum problema. > > Tudo me vem a proposito, caro Paulo, das "regras". > > E lhe faco o elogio de ser um rompedor delas. > > Ora, se nao temos a forca das estacoes, sua delimitacao, >uma profunda diferenca - dizem ate que as civilizacoes que nao vivem >a intemperie & a beleza das estacoes jamais se desenvolvem - >ja li isso alhures a proposito mesmo de explicar nosso atraso e >preguica, coisa assim; pois bem, se aqui so temos sol e sol >e sol, umas meras chuvas ligeiras, terminou de chover la esta >de volta o mesmo sol, entao como "exigir" essa contemplacao >aqui sem motivos, a outonos que nao percebemos ? > > Certamente devem existir outros detonadores para o >hai-cai local ou ele e' impossivel. > > Confesso que acho grande palhacada quando os viajados >daqui falem em outono no Ceara que la nao temos outono. Qualquer >livro de geografia registra isto. > > Da mesma forma que os sapos pulam "...eppur si muove". > > Com um grande abraco, SF. > > > *************************************** >Date: Wed, 20 Nov 1996 09:28:16 -0200 >Sender: haikai-l@cesar.unicamp.br >From: PAULO FRANCHETTI >Subject: Re: Comentarios sobre renga e haikai > >Caro Feitosa: >as vezes acho que a sua obsessao com as regras, de que se diz inimigo >em principio, e' ainda mais forte do que parece... Pois quem e que >obriga alguem a falar de estacao em termos europeus - outono, por exemplo? >- ou quem e' que proibe alguem de faze-lo, quando quiser faze-lo? >A nossa questao, aqui na lista, sempre foi uma so: experimentar o >diferente, fazer versos a partir de uma sensacao concreta (atual >ou recordada ou sentida de alguma forma), dando assim um enquadramento >sazonal (no sentido mais amplo que a palavra puder ter, ou, se preferir, >um enquadramento natural). E' minha conviccao, pois cresci na zona rural, >entre avos e tios imigrantes e agricultores, que a natureza tem ciclos >sempre: no minimo o da epoca do plantio, da colheita, da seca, das chuvas, >etc. As vezes os ciclos podem ser mais marcados, as vezes menos. >Mas concordo que, se voce chegar a conclusao que nao ha absolutamente >nenhuma alteracao, por menor que seja, ao longos dos varios meses que >compoem o ano, voce tambem possa concluir que o haikai seja impossivel no >Ceara. Pelo menos nesse caso, quero dizer: quando o haikai-jin nao >ve nenhum kigo possivel. Porque se nao houver kigo (palavra de estacao, >ou: palavra de enquadramento natural ciclico), positivamente nao >ha haikai, ha tercetos. >Quanto aos sapos, meu caro, o ponto e' o poema de Basho, em que as >ras saltam na agua do velho poco com regularidade. Pelo menos nas >latitudes temperadas, sapos vao para a agua para a reproducao. Quem >vive no meio das plantas aquaticas e nos brejos sao as ras. A traducao >que critiquei era uma parafrase proxima da que fez o Leminsky, poeta, >como sabe, de Curitiba. >Um abraco, o' Feitosa. >Paulo > > ************************************************************ Um abraco. ---------------- Edson Kenji Iura http://www.kakinet.com mailto:kakinet@mandic.com.br ---------------------