Caqui: revista brasileira de haicai

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Pequeno histórico do Grêmio Haicai Ipê


Francisco Handa

1. A idéia


A criação do Grêmio Haicai Ipê está intimamente ligada ao 1o Encontro Brasileiro de Haicai, acontecido em outubro de 1986. Naquela ocasião, o então Jornal Portal pretendia fechar o primeiro ano de sua existência com um evento que representasse a sua linha editorial. A bandeira do haicai foi desfraldada, após receber apoio de entidades representativas como Fundação Japão e Aliança Cultural Brasil-Japão, além dos patrocinadores.


O sucesso do 1o Encontro Brasileiro de Haicai, por outro lado, tinha que vir acompanhado de realizações práticas, caso contrário tornar-se-ia mais uma festa exótica embalada com a presença de estrelas do universo haicaístico. O objetivo claro do 1o Encontro, assim como dos Encontros seguintes, era formar uma nova consciência entre praticantes da poesia haicai. Ainda, o haicai era uma prática isolada, de alguns bem intencionados, mas totalmente distante de uma prática popular ou poesia de massa.


Se por um lado, o Encontro possibilitava a presença de haicaístas em evidência como Olga Savary, Alice Ruiz e Paulo Leminski, por outro, iniciantes no haicai ou simplesmente interessados em geral teriam a oportunidade de ganhar experiência através das palestras assistidas e participação de uma oficina de haicai em forma de concurso. Muitos haicaístas em potencial foram descobertos nestes concursos.


Mas isso não bastava, levando-se em consideração o tipo de Encontro que se pretendia. Os promotores queriam mais. Então como diretor de redação do Jornal Portal, o autor destas letras sugeriu, durante a abertura do 1o Encontro Brasileiro de Haicai, a fundação de grupos de estudos de haicai e similares pelo Brasil afora. O 1o Encontro tinha que reverter em frutos, mas antes havia de se enraizar. A idéia boa, inspirada no 1o Encontro, deveria se tornar realidade.


A idéia de se formar um grupo de estudos tinha sido sugerida pela primeira vez quando encontrei-me com o poeta Roberto Saito, na sala de redação do Jornal Portal. Naquela ocasião, Saito tinha acabado de lançar o seu livro "Faíscas", seu primeiro só de haicais. Conversando com ele, mostrou-se bastante interessado em criar um núcleo de estudos de haicai. Esta reunião antecedia o 1o Encontro Brasileiro de Haicai e que visava discutir critérios técnicos para a sua realização.


Uma vez anunciada a intenção de formar um grupo de estudos, a primeira reunião aconteceu na manhã de 15 de fevereiro de 1987 na sala de redação do Jornal Portal. Nesta primeira reunião estiveram presentes quatro pessoas, entre jornalistas e poetas. A partir da segunda reunião, que deveria acontecer mensalmente, no primeiro sábado de cada mês, veio engrossar as fileiras das discussões haicaístas o poeta H. Masuda Goga, convidado por Roberto Saito. Poetas de diversas tendências começaram a participar das reuniões, sempre afinados com a forma da poesia curta.


2. A pesquisa


Acomodados em volta de mesas, improvisando cadeiras, apertando-se entre as estantes de livros, a redação do Jornal Portal transformou-se nos primeiros dois anos em local exclusivo de estudos sobre a poesia haicai. Coordenados por Roberto Saito, os estudos partiram de uma apreciação teórica do que se tinha produzido no Brasil com a denominação de haicai. A participação de H. Masuda Goga foi decisiva quanto ao tipo de haicai no qual deveríamos enveredar.


Respeitando todas as tendências de haicai praticadas no Brasil, como a de Guilherme de Almeida, Jorge Fonseca Júnior e Oldegar Vieira, o livro "O Haicai no Brasil", de autoria de H. Masuda Goga, lançado em 1988, serviu para avançar no campo de estudos. Esta obra tinha sido escrito originalmente em japonês em 1986 e publicada na revista Haiku Bungakukan Kiyô. A existência de um grupo de estudos de haicai animou o poeta Goga a publicar o texto em português, o que foi feito com a colaboração do Editora Oriento e Aliança Cultural Brasil-Japão.


Enquanto os estudos avançavam, a reunião mensal no grupo de estudos consistia em debater a construção -- métrica, imagética, simbólica -- de haicais dos autores citados. Estes estudos teóricos tinham por finalidade conhecer o tipo de haicai produzido pelos primeiros, reconhecendo neles o esforço em criar uma forma de poesia brasileira tendo por inspiração a poesia de Matsuo Bashô. Em todos eles, estilos que nem sempre se afinavam, tinham em Bashô o fundador do gênero poético conhecido por haicai.


Sendo assim, a busca da poesia composta pelos antigos, principalmente Matsuo Bashô, deveria nortear o tipo de haicai que pretendíamos chegar. De certa forma, era o tipo ideal procurado pelos primeiros haicaístas brasileiros, inclusive o seu introdutor no Brasil, o poeta Afrânio Peixoto. Disse ele no artigo "O haikai japonês ou epigrama lírico" que "toda gente os faz no Japão, não só o vulgo, os 'haijins', ou troveiros populares, senão também grandes poetas, Sôkan, Montakê, Shikô, Iorikito, Buçon... Não é só. Bashô, o mestre de todos os grandes líricos japoneses do haikai..."


Alternadamente, o grupo passou a estudar nos haicais clássicos, exemplos que poderiam contribuir para o estudo desta forma singular de poesia. Tentativas anteriores, de outros poetas, podiam ser verificas nos trabalhos de Waldomiro Siqueira Júnior, o primeiro a publicar um livro de haicais no Brasil, em 1933, passando por Jorge Fonseca Júnior e Guilherme de Almeida. Não era a falta de leitura apurada dos clássicos que poderia impedi-los de compor haicais. Entretanto, um abismo se formava entre o que se lia a respeito e o que se produzia.


De certa forma, os neo-haicaístas teriam levado a sério a observação de Afrânio Peixoto, no artigo citado, quando diz que "o haicai merece naturalização... como os caquis de Barbacena ou Nagasaqui". Esta naturalização foi procurada, por via das dúvidas, pelos membros do grupo de estudo, conforme as palavras de H. Masuda Goga: "Queremos fazer poesia brasileira em forma de haicai".


Entretanto, o que tinha se estudado a respeito de haicai em língua portuguesa, distanciava-se do que o grupo pretendia realizar como haicai. A aproximação dos clássicos reforçava mais a idéia de compor um tipo de haicai associado à sua tradição. Quer dizer, um haicai inserido num universo regido pela transitoriedade. Este deveria ser o ponto mais forte a ser defendido pelo grupo, a sua característica marcante.


Entre os haicaístas antigos, somente Jorge Fonseca Júnior enquadrava-se nesta linha, como mostra seu livro "Roteiro Lírico", de 1939. Antigo companheiro de H. Masuda Goga, Fonseca Júnior teria frequentado as rodas de poetas nikkeis e optado em respeitar a regra da transitoriedade. Este poeta foi um dos diretores da União Cultural Brasil-Japão, que tinha por propósito estudar e divulgar a cultura japonesa. Foi quando Fonseca Júnior passou a promover estudos sobre o haicai. Com o início da guerra, a União Cultural Brasil-Japão foi fechada. Daquele grupo surgiu a haicaísta Fanny Dupré que, influenciada pelo estilo de Fonseca Júnior, publicou "Pétalas ao Vento" em 1949.


Os resultados obtidos pelo grupo de estudos foram divulgadas em japonês, numa coluna literária que H. Masuda Goga possuia no Diário Nippak, jornal em edição bilingue, de São Paulo. Além deste, outros artigos escritos por ele foram veiculados em boletins do Japão. Se no começo, não havia a necessidade de um nome, do grupo de estudos, com a divulgação dos artigos, tornou-se necessária uma designação. Na terceira reunião, o grupo de estudos passou a ser chamado Grêmio Haicai Ipê, tendo por fundadores os iniciantes.


3. A designação


Quando surgiu a oportunidade de fundação do grêmio, os seus idealizadores procuraram expor as suas idéias sobre a finalidade daquele grupo. Em primeiro lugar, o objetivo seria o de estudar o haicai, seguido de prática. Questões como a sua administração e finanças passaram para um segundo plano, em se tratando de um grupo poético. Desta forma, a designação GRÊMIO tornou-se mais coerente, atendendo os propósitos a que se pleiteava. As questões burocráticas, para o seu funcionamento, não deviam atrapalhar o bom andamento dos estudos. Nem de uma sede, o Grêmio necessitava, pois foi cedida na ocasião a sala de redação do Jornal Portal, livre aos sábados. A manutenção do Grêmio não necessitava de verbas, pois despesas não havia. Cargos na hierarquia do Grêmio eram tão dispensáveis, ao ponto de nunca terem sido cogitados. Ao invés disto, um sistema de auto-gestão foi colocado em prática: os mais antigos podiam ensinar os mais novos, quem sabia mais ensinava quem sabia menos. Com a vigência deste sistema, cambiando idéias, H. Masuda Goga tornou-se o ponto de equilíbrio nas discussões.


Enquanto Roberto Saito enriquecia o debate com a crítica literária, desconstruindo o poema, debatendo o discurso, analisando a morfologia, H. Masuda Goga oferecia a tranquilidade ao indicar o caminho para o tipo de haicai pretendido. Sempre diplomático, Goga propunha as vias sem criar atritos com as partes envolvidas. Os estudos realizados eram dirigidos a fim de alcançar um tipo ideal, colocou-se antes. Mas prática não vive apenas de ideologia. Esta prática tinha que se adequar ao haicai da Escola de Bashô, disse certa vez Goga. Assim, sobre o haicai do Grêmio não pairaria nenhum tipo de dúvida.


Acreditávamos que a atividade do Grêmio, sua discussão interna, estava norteando o tipo de grêmio que queríamos. Era aquele! Evidentemente, o papel de um líder carismático é sempre necessário para o seu bom funcionamento.


Durante os anos de 87 e 88 o Grêmio Haicai Ipê funcionou nas dependências do Jornal Portal. Tempo em que somente a pesquisa dirigida e a discussão metodológica fizeram pauta das reuniões. A partir da segunda metade de 88, análises de alguns haicais, tentados por parte dos integrantes ganharam vez. O próprio H. Masuda Goga chegou a expor uma dezena de haicais, de sua autoria e em português, para ser examinada e retificada pelos companheiros de banca.


4. A senda


As reuniões de 89 em diante passaram a acontecer numa das salas da Aliança Cultural Brasil-Japão, da Estação Vergueiro. A transferência para a ACBJ modificou também a espécie de reuniões que até então fazíamos. Fomentamos uma reunião prática de haicai. O sistema adotado para a sessão era similar ao das reuniões dos praticantes em língua japonesa. Tal sistema foi noticiado, pela primeira vez em português, na coluna de haicai do Jornal Portal. Feitas as adaptações necessárias, as reuniões práticas começaram a acontecer. De início, questões complicadas como o "termo de estação" (kigo) eram sugeridas através dos temas. Estes, devidamente escolhidas para aquela ocasião por H. Masuda Goga. Os trabalhos eram selecionados, conforme o gosto e a crítica de cada um, pelos próprios participantes da reunião.


Naquele momento, a prática do haicai, evidentemente com as suas falhas, era necessária para transformar a teoria em algo mais concreto. A tentativa era a de compor um haicai ideal, usando uma linguagem nacional, e tendo por base a experiência de vida de cada um. As dificuldades eram enormes: falta de conhecimento da flora, suas características, as características das mudanças sazonais, enfim de tudo aquilo imprescindível para um bom haicaísta. O aprendisado iniciava-se através da adoção de um novo ponto de vista, a observação contínua da natureza e suas transformações. Não se tratava em copiar os haicaístas japoneses, pelo contrário. Importante era compôr um tipo de haicai nacional, usando como fonte de inspiração a própria natureza brasileira.


Quando começamos a falar em compor haicai em português, sem dúvida, alguns japoneses mais conservadores mantiveram-se numa postura de incredulidade. Para eles, poema curto não era sinônimo de haicai. Certo, nisto tinham razão. Compor poesia haicai exigia mais do que boa vontade; exigia-se a paciência do haicaísta em estudar a natureza numa atitude de contemplação e interação com a própria. Não estávamos errados; os estudiosos e praticantes de outras partes do mundo também pensavam como nós. Destarte, vinha acontecendo desde a segunda metade dos anos 80 uma internacionalização do haicai. Este processo tinha em comum um resgate da forma original do haicai: o haicai de Bashô. Em outras palavras, um tipo de haicai que levava em consideração a transitoriedade sazonal.


Por esta vertente o haicai praticado pelos membros do Grêmio Haicai Ipê deveria expandir seus horizontes. Como primeira parte desta prática, o Grêmio Haicai Ipê publicou em 1991 a antologia "As Quatro Estações", na qual, como explicita o título, mostrava sua preferência pela transitoriedade. Se por um lado, a prática avançava, estudos mais profundos sobre o "termo de estação" (kigo) encontrava-se em estado embrionário. A participação do H. Masuda Goga de um seminário de haiku, em agosto de 1991, no Hotel Nikkey Palace, quando esteve presente o prof. Tomotsugu Muramatsu, reitor da Universidade Tôyô, de Tóquio, animou-o enormemente. Aproveitando a ocasião, Goga tinha me aconselhado a ir como repórter da Revista Portal entrevistar o ilustre visitante. Fiquei sabendo que o prof. Muramatsu era um estudioso do haicai, com quem Masuda Goga costumava se consultar através de correspondência.


Desconhecia como aquela entrevista poderia fortalecer tanto o nosso ponto de vista à respeito do haicai, mas principalmente de Goga. Fiz a pergunta, questionando sobre a utilização do "termo de estação" (kigo) pelos haicaístas ocidentais, ao que respondeu: "Essa é uma questão que se discute muito hoje. Será produto de uma cultura? Tomando como exemplo a cultura portuguesa, acho que a natureza, em suas diversas manifestações, foi cantada pelos poetas. Levando-se em consideração este ponto, é só desenvolvê-lo de forma concreta". Para finalizar, ele disse que "em qualquer cultura que se busque um sentido universal, o Kigo pode ser desenvolvido".


Animado com a idéia de desenvolver um estudo sobre o kigo, H. Masuda Goga iniciou um trabalho de catalogação de termos juntamente com a haicaísta Teruko Oda. Intitulado "Natureza - Berço do Haicai", esta obra foi publicada em 1996 como parte dos festejos do Centenário da Amizade Brasil-Japão. É uma outra etapa que se abre no estudo do haicai e sua prática.


Desde o início, a idéia de se formar um grêmio de haicai foi a de praticar este gênero de poesia, embasado em pesquisas e estudos contínuos. Não se trata de um grupo de recreação, ou onde se fomente a criação de patrimônio, ou que alimente o ego de alguns, gerando tirania e discórdia. A pretensão do Grêmio não é ir além dos seus limites.



Para saber mais


O que é o Grêmio Haicai Ipê


A antologia da estação do Grêmio Haicai Ipê.

19 de agosto de 2001

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