Os haicais que borbulham como refrigerante

Edson Iura (texto e traduções)

O haicai que virou título (em japonês)

No artigo anterior, fizemos uma resenha do animê Palavras que borbulham como refrigerante e revelamos por que o seu diretor adotou a linguagem do haicai. A seguir, repassaremos alguns dos haicais do filme com nossa tradução para o português, lembrando que as versões apresentadas no filme são transcrições em prosa corrida feitas para atender às necessidades de legendagem e dublagem. Os kigôs (palavras de estação) estão marcados em itálico nas traduções.

Aviso de spoiler: O texto a seguir pode conter revelações importantes do enredo (Nota: Asseguramos que o final do filme não será revelado. De qualquer maneira, o conceito de spoiler é relativo para uma história do tipo boy-meets-girl. Apesar da originalidade de alguns enfoques, ela ainda depende de clichês do gênero, sendo certo o destino dos dois protagonistas. Chegamos a ler em um fórum a queixa de que o trailer é basicamente o resumo do filme. Não é. De qualquer forma, não deixe de reparar nas sombras da cena pós-créditos. Num filme com poucas sombras, são elas que ao fim tiram qualquer dúvida).


Explosão de vida

O primeiro momento do filme é praticamente um cartão de visita: a visão de um típico prédio de conjunto residencial, onde uma pichação concorre com a hera que progressivamente avança sobre a parede. A pichação na verdade é um haicai que anuncia o endereço de Cherry, apelido do adolescente Sakura Yui:

Bloco residencial pichado com um haicai

aotsuta no danchi bokura wa san-maru-go

Aqui nós moramos –
Condomínio da hera verde
trezentos e cinco.

Dentro do apartamento 305, vamos encontrar Cherry aprontando-se para o trabalho enquanto revisa em voz alta alguns de seus últimos poemas. Ele é cuidador em meio-período no centro para idosos situado no shopping center. A cena não deixa dúvidas: Cherry é um jovem haicaísta dedicado a anotar cada pequena cena do dia-a-dia. Ele não larga o celular, mas seus haicais têm métrica e kigô (palavras de estação). Eis um exemplo, inspirado pelos onipresentes campos alagados de arroz que cercam sua cidade:

sora tooshi aota no ue o tayutau hi

Bem longe no céu
Sobre os verdes arrozais
o sol cintilante.

Nenhuma criatura é pequena demais ou insignificante para a sua atenção:

Aranha d’água

amembo ga minamo ni nokosu hamon kana

Aranha-d’água
Na superfície em que desliza
deixa ondulações.

Gente e natureza, tudo parece em harmonia neste lugar:

natsufuku ga tambo to haeru jimoto kana

Na minha cidade
As roupas de verão ornam
com os arrozais!

O verão está presente em todos os lugares. No céu, os cúmulos-nimbos fazem contraste perfeito contra o céu azul enquanto ouvem-se as cigarras ao fundo e os campos verdejantes de arroz estendem-se até o horizonte. Há ventiladores espalhados por todos os cantos e até mesmo os pratos preparados pelas donas de casa (melão amargo refogado e macarrão gelado) são típicos da estação.

No verão, tudo cresce muito e aponta para o alto

ue o muku mono no oosa yo natsu kitaru

Voltadas para o alto
tantas coisas e pessoas!
O verão chegou.

Os haicais que aparecem no filme são quase todos escritos por Cherry. Alguns poucos são de Fujiyama, um idoso frequentador do centro de cuidados com um grande conhecimento de haicai, que se torna um tipo de mentor para Cherry. Um haicai do idoso pode ser visto caligrafado num grande kakemono dependurado na parede da instituição:

Haicai de Fujiyama dependurado na parede

hatsu ake ya oite koso jinsei bakuhatsu

Primeira manhã do ano
A velhice, de verdade,
é explosão de vida!

É algo que não se espera da idade, talvez um incentivo aos frequentadores, talvez a filosofia de vida de Fujiyama. Ele é surdo, por isso às vezes se exprime aos berros, como ao declamar, de forma aparentemente aleatória, o seguinte haicai:

Cherry se assusta com o berro de Fujiyama

kanjô ya shônen umi yori agari keri

Com teus sentimentos
vai, levanta-te, meu jovem,
acima do mar!

Trata-se de um poema sem kigô de um autor real, Settsu Yukihiko (1947-1996), em forma de chamamento, ao qual se reserva uma importante função posterior. “Nos haicais de Settsu há mistério e movimento, além de atribuir som às paisagens”, discorrem Cherry e Fujiyama sobre o autor.

Dezessete verões

No verão, o shopping center está sempre lotado de famílias, para as quais são organizadas atividades de lazer, sendo uma delas uma graciosa corrida de bebês. A partir de estímulos adequados, espera-se que os pequenos engatinhem em direção à linha de chegada. Uma das crianças, pouco afeita à formalidade do sinal de partida, dispara na frente sob o olhar aflito da supervisora que grita em vão: “falsa largada!”, “falsa largada!”

Corrida de bebês

Cherry, que a tudo assiste, tem um estalo: pode ser a ideia para um novo haicai. Uma das graças do filme está em mostrar esses momentos da prática poética com os quais todo haicaísta vai se identificar. Seu primeiro ato é contar nos dedos as sílabas da expressão “falsa largada”. Seguro de que ela cabe em uma linha de haicai, confere sua existência no dicionário de kigôs (saijiki ou kiyose) que leva preso à capa do celular. Há muitos kigôs vivenciais, inclusive ligados a esportes. Por que não?

Dicionário de kigôs (saijiki ou kiyose)

Mas sua procura é bruscamente interrompida em consequência da confusão gerada pelo endiabrado amigo Beaver. Ao fugir da segurança do shopping, ele tromba com Cherry e também com Smile, que casualmente passava pelo local transmitindo mais uma live.

O par é lançado ao chão sem consequências mais graves do que o desprendimento da máscara de Smile, revelando a Cherry o que ela queria esconder do mundo. Com efeito, a primeira palavra, balbuciada pelo atordoado mas atento rapaz, ao olhar para Smile é “aparelho”. Percebendo sua intimidade exposta, Smile abandona o local em carreira desesperada. Cherry, ao contrário, levanta-se estoicamente e, esquecido de seu primeiro achado, passa a contar as sílabas da palavra “aparelho”, disposto a usar sua nova descoberta.

Smile deixa cair a máscara

Ao fim do turno de trabalho, Cherry vai descansar com seus amigos Japan e Beaver. Inspirado pelo belo pôr do sol à sua frente, ele resolve compor algo com a palavra “entardecer”, mas nada lhe ocorre no momento. Beaver é um espevitado filho de decasséguis latino-americanos. Ele espera melhorar seu conhecimento de língua japonesa pichando os haicais de Cherry em cada parede vazia que encontrar. Os erros de troca de kanji (ideogramas) que comete involuntariamente são fonte de alívio cômico e ao mesmo tempo trarão a chave para conectar o passado e o presente do filme.

Em outro dia, vemos um grupo de idosos sendo conduzido para um passeio pelo shopping para compor haicais. É o ginkô, ou passeio poético, outra atividade típica dos haicaístas. Nisso, são orientados pela professora Miyuki, auxiliada por Cherry, que toma conta dos idosos. Ao fim da atividade, o grupo é reunido e a professora começa a ler em voz alta os haicais produzidos.  Inesperadamente, o tímido Cherry é instado a ler o próprio poema:

Cherry lê o seu haicai durante o ginkô (passeio poético)

shoppingu mooru yûyake ni toketeyuku

Até o shopping center
vai se derretendo aos poucos –
Arrebol da tarde.

Mortificado e trêmulo de vergonha, nosso herói ainda se recupera da leitura quando Fujiyama declama seu haicai. A presença de Smile, assistindo à reunião mal escondida por uma mureta de vidro, foi a fonte de inspiração:

semigoe ya masuku hazusenu shôjo ni mo

Canto da cigarra
Mesmo a garota de máscara
consegue escutar.

É o começo da amizade entre Cherry e Smile, que resolvem voltar juntos para suas casas. Durante o caminho, Smile pergunta a Cherry se ele cria haicais com facilidade, ao que ele responde que sim, desde que esteja num dia bom. Estimulada pela resposta, Smile faz o pedido que todo haicaísta odeia: “Então tente fazer um [agora]!”

As luzes de verão já se acenderam na rua

De início embaraçado pela demanda, Cherry começa a juntar lentamente as peças de um quebra-cabeças: Primeiro, repara que, ao fim da tarde, as luzes da rua já se acenderam, talvez um pouco cedo demais. Em seguida, as lembranças de dias atrás sobre a corrida de bebês e a imagem do entardecer juntam-se em sua mente. O resultado é este haicai:

yûgure no furaingu meku natsu tomoshi

Falsa largada
Na hora do entardecer –
Luzes de verão.

Smile adora o resultado, que classifica de kawaii (fofo), deixando Cherry um pouco perplexo. Também achamos “fofa” a atualização do significado de um kigô tradicional como “luzes de verão”. Enfim, a amizade cresce e vai se moldando em outro tipo de sentimento:

jû nana kai me no shichigatsu kimi to au

No décimo-sétimo
julho da minha vida
eu encontrei você.

Julho é verão no Japão. Dezessete verões Cherry já viu passar. Aos dezessete anos ele encontrou o amor. A convivência com uma pessoa diferente traz a necessidade de olhar o mundo sob novas perspectivas:

Beaver picha o haicai do girassol

himawari ya “kawaii” no i o jisho ni kiku

Girassol
Perguntei ao dicionário
o que significa “fofo”.

“Fofo” é o paralelo entre a trajetória da flor o dia inteiro perseguindo o sol e a busca de Cherry por uma resposta. Ele não ignora que a personalidade luminosa e sincera de Smile esconde um segredo:

aoba yami riyu wo shiritai dake nanda

Sob as folhas verdes
uma grande escuridão –
Só quero o motivo.

No verão a folhagem torna-se densa e luxuriante a ponto de, às vezes, bloquear a luz do sol. Mas de seu lado, Cherry sabe que os sentimentos se acumulam no peito e precisam encontrar um caminho de saída. Então compõe o haicai que dá título ao filme: 

Refrigerante é inspiração para um haicai

saidaa no yô ni kotoba ga wakiagaru

As minhas palavras
borbulham como se fossem
um refrigerante.

Saidaa é a pronúncia japonesa de cider ou cidra, bebida gaseificada à base de maçã. Após sua introdução no Japão da Era Meiji, passou a identificar todo tipo de bebida gaseificada não alcoólica, que nós chamamos de refrigerante.

A dança das cerejeiras

A partir da metade do filme, a ação se transfere para a antiga loja de discos de Fujiyama. Da surrada capa de disco que o idoso carrega para todo lugar, cai uma velha filipeta com um haicai escrito pelo próprio:

Fujiyama não quer esquecer

sayônara wa iwanu mono nari sakura mau

Adeus é palavra
que não ouso pronunciar –
Dança a cerejeira.

É um poema que expressa a saudade de Fujiyama, mas que também ecoa em Cherry. Para ele está chegando a hora de dizer adeus, por causa de sua mudança iminente, mas falta-lhe coragem.

yû niji ya kimi ni iitai koto ga aru

Arco-íris da tarde –
Tem uma coisa que eu quero
dizer pra você.

O arco-íris é como um sinal para chamar a atenção ou funcionar como lembrete. Entretanto, todas as oportunidades que aparecem são perdidas por hesitação.

O título na capa do disco de Fujiyama é Yamazakura. É o nome de uma árvore e também um kigô de primavera. É composto das palavras yama [montanha] e sakura [cerejeira].

Flores e folhas novas coexistem na yamazakura.

Cherry tem a oportunidade de ler sobre o assunto. As mundialmente famosas cerejeiras ornamentais são o resultado de séculos de manejo e cruzamentos conduzidos pelos jardineiros japoneses. Dos galhos nus nascem primeiro as flores, que caem e dão lugar às folhas. Já a yamazakura é uma árvore em estado nativo, em que as folhas novas brotam ao mesmo tempo que as flores. A tradição associou a folhagem precoce da yamazakura aos dentes projetados para a frente das pessoas dentuças. Assim, essas pessoas eram antigamente chamadas de yamazakura. A partir dessa informação, ele escreveu o seguinte haicai:

yamazakura kakushita sono ha boku wa suki

Yamazakura
As folhas que você escondeu
eu gosto delas.

No passado, Smile seria chamada Yamazakura

A palavra em japonês para folha(s) é ha. A palavra para dente(s) tem a mesma pronúncia: ha. Esse jogo de palavras, um tipo de kakekotoba, será escancarado nas pichações equivocadas de Beaver, que trocará uma palavra por outra, tornando mais evidentes os sentimentos de Cherry por Smile. Também é o caminho que conecta o amor de verão dos jovens com o amor primaveril de Fujiyama, vicejado meio século atrás, à sombra das yamazakura. Há anos Fujiyama busca pelo disco de sua falecida esposa, a única coisa que o fará recuperar a memória daquele amor e talvez agora, com a ajuda de Cherry e Smile, ele consiga reavê-lo.

Por puro acidente, Smile finalmente descobre que Cherry vai se mudar. Magoada pelo silêncio de Cherry, Smile lembra-o da promessa quebrada de verem juntos os fogos de artifício do Festival de Daruma, no exato dia da mudança. Smile se despede e Cherry é incapaz de lhe dirigir uma única palavra de volta:

raimei ya tsutaeru tame ni koso kotoba

Uma trovoada
As palavras servem sim
para comunicar!

Chegou o dia da mudança e também do Festival de Daruma, auge do verão na pequena cidade. Mas enquanto todos esperam a queima de fogos na cobertura do shopping, a passagem do carro de Cherry ao lado do prédio, de saída da cidade, reaviva os velhos sentimentos.

Personagens de Palavras que borbulham como refrigerante (Netflix)